segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Onde Vão Morrer as Enciclopédias

Memórias póstumas. Memórias posteriores.

Só o tempo e a distância permitem transpor para o papel aquilo que este dificilmente poderá transmitir.

Quando entrei, de urgência, no H.D.B. com uma intensa dor e após estabilizado, perguntei-me: o que faço agora aqui, sem um pedaço de papel para os meus rabiscos. Sem um pedaço de livro para ler. Aqui seria um excelente sítio para existir uma biblioteca. Enganava-me, redondamente.

As enciclopédias, vivas, com quem tive o prazer (no meio da dor!) partilhar o espaço, lembraram-me o que já sabia. Que uma vida vivida contém mais saber do que uma volumosa enciclopédia.

O Sr. Armando, com origens em Bragança a residir em Stº Antº Cavaleiros, reformado da Soponata, a extinta Socidade Portuguesa de Navios e Tanques, homem polido e mundo-viajante, com quem aprendi os detalhes técnicos dos grandes e modernos navios petroleiros e as diferenças entre Crude e Brent.

Transferido para outra secção, onde estive mais 7 dias, à minha direita o Sr. Vilela, que entrou à meia noite de um sábado agarrado a uma bolsa de sangue.
Com aspecto de um general eslavo, percebia-se contudo a sua condição humilde. Não obstante, como escrevia Alexandre Soljienitsin nas memória do seu Gulag, “quando privas alguém de tudo ele volta a ser inteiramente livre”. E este senhor, apesar da avançada idade e débil condição física, não permitia que enfermeiros e auxiliares o tratassem de forma menos correcta. Exigia o que era justo, e era atendido. Também, apesar de débil e em sofrimento, não perdia o fino sentido de humor, quando lhe perguntavam se já não fumava: “Não, não fumo desde que entrei aqui!”.
Bracarense de nascimento e ainda de sotaque, apesar de 40 anos em Bragança, e com uma memória da cidade que já não existe.

Outro fumador inveterado e irreversível, mas também abstémio apenas desde que entrou aqui, o Sr. João Rio, apesar de ter sofrido uma embolia cerebral que lhe custou algum tempo em coma e vários meses de recuperação, e agora o “apodrecimento” de uma artéria que quase lhe custa uma perna, garante que não vai deixar de fumar.
É pena, bom companheiro!

À minha esquerda, o Sr. João Pedro de Dine, ex-bancário, aficionado caçador nocturno de Javalis (num Agosto terá ido à cama apenas uma noite), e uma luta corpo a corpo custou-lhe algumas marcas numa perna. Um homem grande, em tamanho e personalidade. Um excelente conversador e contador de histórias reais. Das suas viagens pelo Portugal de lés-a-lés no transporte de valores, ao tempo em que as carrinhas blindadas ainda não existiam, munido apenas com o seu “canivete”, como lhe chamava à 6’35. E que agora utiliza, ou utilizava, “porque as pernas já não ajudam”, nos enfrentamentos com a caça nocturna.


Registo e partilho no éter uma brevíssima referência a estas enciclopédias vivas. A quem desejo a melhor saúde e uma longa vida.


“Viagem” de 9 dias no H.D.B. – Hospital Distrital de Bragança
4 a 12 Ago.2008

2 comentários:

Anónimo disse...

Milcar...

Tentei postar comentários mas a página não abria.
Ui, que aconteceu contigo? Nove dias no Hospital??

BEIJÃO_________Elaine.


http://ejum.fotoblog.uol.com.br/
http://ejum.blog.uol.com.br/

indigena disse...

Elaine!!

Obrigado pelo seu cuidado.
Nada de grave, apenas a operação de urgência, como é costume nestes casos, à apêndice.
Dizem que dura só 3 dias. Mas há corpos menos resistentes...
Mas enfim já passou...

Deste lado do atlântico, continuamos atentos à sua missão de embaixadora e divulgadora do Brasil.

Bjnhos e um excelente Brasil.

Amílcar

(Os posts deve ter sido um problema pontual do Blogspot)